sábado, 26 de março de 2011

Poema em linha reta...


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu,

tantas vezes reles,

tantas vezes pouco,

tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente,

Eu,

que tantas vezes não tenho tido paciência,

Eu,

que tantas vezes tenho sido ridícula,

absurda,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesca,

mesquinha,

submissa e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado,

tenho sido mais ridícula ainda;

Eu,

que tenho sido cômica às criadas de hotel,

Eu,

que tenho sentido o piscar de olhos dos moços,

Eu,

que tenho feito vergonhas financeiras,

pedido emprestado sem pagar,

Eu,

que,

quando a hora do soco surgiu,

me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu,

que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo,

nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe

- todos eles príncipes -

na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado,

mas uma infâmia;

Que contasse,

não uma violência,

mas uma covardia!


Não,

são todos o Ideal,

se os ouço e me falam.

Quem há neste mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncesas...

Arre, estou farta de semideusas!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu? vil e errônea nesta terra?

Poderão os homens não as terem amado,

Podem ter sido traídas

- mas ridículas nunca!

E eu,

que tenho sido ridícula sem ter sido traída,

Como posso eu falar com os seres superiores sem titubear?


Original de Fernando Pessoa


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